Primeiras Impressões de O Jogo das Contas de Vidro de Hermann Hesse

      Creio que Primeiras Impressões não é a melhor escolha para apresentar esse artigo. Contudo, faltam alternativas que expressem tão bem como esse título.

       Li  O Jogo das Contas de Vidro de Hermann Hesse pela primeira vez em 1989, quando ganhei um exemplar de presente de Natal dos meus pais. Eu contava então 17 anos.

      Hermamm Hesse já era – e ainda é- um dos meus autores preferidos. Este não foi o primeiro livro que eu li de Hesse e também não foi o último-ainda que seja um dos meus livros preferidos.

         Como não me encantar,  estando em plena adolescência, com o estilo inconformista e rebelde daquele alemão, nascido em 2 de julho de 1885 e naturalizado suíço desde a década de 1920?

           Naquele final da década de 80 e  inicio dos anos 1990  eu sequer imaginava que um dia escreveria para meu blog as Primeiras Impressões de um clássico da literatura . Livro este que rendera para o autor nada menos que o Nobel de Literatura em 1946, além de ser a Obra que marcou o fim da carreira de Hesse como autor. E também era impossível prever que Hesse seria minha principal fonte de inspiração literária, tantos anos depois.

          Ouvi de alguns leitores que minha escrita é “peculiar”. Espero que peculiar tenha sido empregado como sinônimo para diferente e não como um eufemismo para indecifrável rs.

          O tom para a prosa empregada pelos autores contemporâneos é direto, prezando a objetividade acima de tudo, muito longe dos textos herméticos do autor do Jogo dos Alvéolos- outro nome pelo qual é conhecido o jogo que serviu para o autor como inspiração para esta trama, ambos fictícios.

             A ação dos personagens é entremeada por digressões de Hesse onde ele, no papel de narrador, faz considerações ferinas recheadas de ceticismo, ironia e critica social. Posso dizer que esse estilo de criticidade  de Hesse eu  tentei emprestar para minha própria Obra Literária-embora, é claro, eu não tenha sequer a pretensão de assemelhar-me ao Mestre.

        A escrita do Hermann Hesse é única e isso o torna gênio. Gênio não é possivel se copiar. Quando muito, um gênio como ele nos serve para  inspiração e estudo.

       O Jogo das Contas de Vidro é, enquanto categoria, um livro Romance no subgênero utopia.

       Hesse imaginou uma sociedade no ano de 2.200 e a trama se passa nesse tempo, servindo de pretexto para o autor discorrer sobre suas opiniões políticossocial/filosófica do que encontraremos no futuro. Ainda hoje, em 2018, o tempo imaginado pelo autor requer um exercício de criatividade para ser compreendido.

    No prefácio escrito por José Geraldo Nogueira Moutinho para a 12° edição (1971) traz a seguinte explicação sobre a sociedade de Castália:

 

“No jogo das Contas de Vidro se descreve uma sociedade mítica no qual em absoluta imobilidade e desesperante ausência de devir vital, alguns sábios se deleitam na prática de um jogo complexo e requintado, último avatar de uma cultura inútil. O personagem central descobre a contradição entre Castália imobilizada e a vida exterior e foge (...). Hesse imagina um pequeno Estado espiritual que denomina Castália ( país da castidade) , onde uma elite de jovens se dedica à musica, à astronomia, à matemática, renuncia ao casamento e a toda função remunerada, recebendo estrangeiros que eventualmente queiram fazer retiro espiritual.”

 

          Portanto, esta não foi esta a primeira leitura desse livro. Muitas se sucederam desde aquela primeira, ainda no natal de 1989. A cada leitura eu era outra pessoa, porém. O meu olhar sobre o texto enxergava nuances até então despercebidas como se eu tivesse outro livro em mãos.

       Quando abri este exemplar para buscar alguns trechos para  ilustrar a análise , busquei o livro  guardado há anos. Deparei-me com as páginas brancas já amareladas porque naquele tempo não era fetiche ter livros com páginas amareladas. Engraçado imaginar que esse amarelado do papel pólen é uma antevisão, de qualquer forma, da cor que qualquer papel assumirá no futuro. Uma antecipação do inevitável.

       A capa está um tanto amarrotada- é verdade. Enquanto objeto, o livro resistiu com bravura a quatro mudanças de residência, embalagens, manuseio e desgaste natural.

      Mas é no conteúdo que percebemos como essa derradeira obra foi capaz de fechar um ciclo, como uma obra biográfica deve ser.

       José Servo é nada mais que o alter ego de Hermamm Hesse, capaz de reaproximá-lo do mundo da infância,reconciliando-o com o cristianismo e com a casa paterna.

      O protagonista não tem pais ou foi separado para longe deles, não importa. O que é importante ressaltar é que o personagem foi criado na escola, no internato, sendo adotado pela Direção de Ensino.

        O jogo das contas de Vidro possui uma base musical e é um jogo praticado pela  Elite – aqui entendida como meramente intelectual.

         Para praticar esse jogo não basta saber música, tem que saber improvisar e ser capaz de entender os sons como grafia própria para as mais diversas áreas do conhecimento. No início do Tempo, o criador do Jogo dos Alvéolos inventou algo para seu deleite pessoal, mas pouco a pouco o jogo tomou tal vulto na sociedade que os jogadores transformaram-se em uma casta privilegiada. Ao mesmo tempo endeuzada quanto ridicularizada, a Elite era proibida de viver a vida mundana, como casar e ter filhos ou mesmo exercer outra profissão. Poderia passar dias escrevendo sobre coisas sem utilidade prática se fosse seu desejo e sua produção era valorizada. Por outro lado, não poderia jamais usufrurir de prazeres pequenos.

           Quando o jovem Servo tinha 13 anos a sua iniciação como jogador de fato começou. Segue um trecho da obra que ilustra essa iniciação:

         “O Magister Musicae levou o jovem a um canto, conservando-o debaixo de uma sequóia. Um sorriso quase sarcástico enrugou a pele em redor de seus olhos, quando ele respondeu.

        — Tu tens o nome de Servo, meu caro, e por isso a palavra “liberal” possua para ti tanto encanto. Mas neste caso não a leves tão a sério! Quando pessoas estranhas a Castália falam de profissões liberais, essa expressão talvez ressoe aos nossos ouvidos como um tom sério e mesmo patético. Mas para nós tem um sentido irônico. A liberdade dessas profissões consiste em poderem ser escolhida pelo estudante... Isso dá uma aparência de liberdade, embora às vezes seja mais escolha da família do que do aluno (...). Desde os estudos  o médico, o advogado, o técnico,  estão presos a um crurrículo muito rígido. Tem que ganhar dinheiro, tomar partido das castas, dos jornais..(...) Em Castália se dá ao contrário. Como aluno da Elite e futuro membro da Ordem, ele deixa que o coloquem no lugar e na função escolhidos para ele. Porém, terminado os estudos iniciais, os electi terão a maior liberdade que possam precisar, além de não conhecer a luta pelo ouro, pela fama, pelo poder (...) tu estás vendo, meu filho, que quando se fala em profissões liberais, a palavra liberal tem um sentido bem “irônico”(..)”.

       É interessante perceber como o autor usa do tom profético de sua obra para denunciar a falta de liberdade que ainda se faz presente. Será que essa ausência de liberdade persistirá em 2200?

       Essas foram as  primeiras impressões correspondentes as primeiras 63 páginas do total de 460 páginas.

        Espero que tenham gostado. Aguardem que em breve farei a resenha completa.

 Michelle Louise Paranhos- escritora e critica Literária